segunda-feira, 8 de novembro de 2010

HISTÓRIAS DE UMA CASA

Aquela casa na Av. Afonso Pena tinha portas e janelas altíssimas. No mês de agosto os ventos sopravam por  todos os lados e papai, sempre com medo de doença, calafetava com lençóis as janelas para o vento não perturbar o sono dos filhos. Mas mesmo assim ele soprava em cima do telhado e entrava no quarto por pequenos orifícios junto ao forro da casa. Eu imaginava aqueles furos como a passagem de gênios e fadas.

As histórias infantis são sempre povoadas de malfeitores que amedrontam as crianças. Todas têm uma bruxa, uma feiticeira, uma madrasta.

A luta entre o bem e o mal, a bela e a fera, sempre está povoando o universo das crianças. Naquele quarto de teto altíssimo, tive todas as doenças de infância. Lembro-me de Matilde, uma negra que nos embalava cantando canções do tempo dos escravos. Os escravos já tinham sido libertados há muito tempo, mas suas canções dolentes, tristes continuavam fazendo as crianças dormirem:

“Kubaba   Kangere Nego d’angola num tem Querê”.  

Esse “num tem quere” significava uma falta de liberdade que se aprofundava nas memórias de um passado negro e injusto.
Nas lembranças mais remotas daquela casa ressurgem sempre os livros de papai.Tínhamos de passar por um piso de ladrilhos coloridos para penetrar naquele santuário onde o pai ficava sempre estudando, sentado numa cadeira giratória. Um dia não resisti. Perguntei:
“Papai, por que você não escreve livros infantis?”
Papai não me deu resposta satisfatória e eu continuei sonhando com os livros infantis. Ele nos incentivava às leituras, era preciso ler e ler muito para algum dia escrever um pouco.
As histórias de mil e uma noites me fascinavam. Elas me faziam realizar sonhos de um dia conhecer o outro lado do mundo.

As crianças de antigamente brincavam na rua. Brincávamos de roda, de esconde esconde e escorregávamos pela ladeira em carrinhos de rolimã feitos por nós mesmos.
Meu irmão Paulo desde cedo revelara uma forte criatividade para inventar coisas, desde rádio Galena feito em casa, até caleidoscópios com vidrinhos coloridos encontrados na rua, no meio do calçamento.
Eu pensava comigo mesma:
“Vidrinhos coloridos a gente encontra na rua em BH, mas pedras de ouro só mesmo no Serro onde papai nasceu. Ali ele, quando criança, ia catar pedrinhas de ouro que desciam nas enxurradas após as chuvas.”
As histórias das pedras preciosas descendo o morro me fascinavam.
As Minas Gerais tinham um tesouro escondido por debaixo da terra...
Esse tesouro despertava a ambição dos bandeirantes, dos portugueses e também dos ingleses.
Papai era advogado da Metalúrgica Sto Antonio de Américo Gianetti e um dia nos levou para ver a fundição em Rio Acima onde eram feitas panelas de ferro. O que me deixava impressionada era ver a descida do ferro incandescente como um rio de fogo.

A casa tinha um pátio onde praticávamos esportes e apresentávamos cenas inventadas de circo e teatro. Um dia Lulude desfilou como equilibrista sob o olhar apavorado de tia Mucíola. Nas apresentações de teatro, o talento de Neda como declamadora chamava a atenção de todos.

A arte de declamação prolongou-se na família e anos mais tarde, Terezinha, filha de Guilhermina e Paulo também declamava, com muita emoção, versos de nossos grandes poetas.
Atualmente os saraus familiares oferecem voz e poesia, uma síntese de canto, música e poemas, interpretados por Luciano, Ivana e Evaldo.

Naquele pátio da Avenida Afonso Pena aconteciam apresentações espontâneas que envolviam todas as crianças da família. Clóris e tia Mucíola lideravam a turma, criando textos muitas vezes cheios de humor. Lembro-me de ter interpretado personagens que criticavam os adultos da família. Um dia decidi criticar também a própria Cloris, que organizava os eventos. Desenhei o seu perfil com uma tesoura na mão cortando a casaca de um homem. Escrevi embaixo:

“Poetisa mui querida
Escritora de mão cheia
Eis min’arte preferida
Cortar a casaca alheia”

Tia Maria Silvia participava dos eventos como a mais nova de todas as tias. Ela tocava violão e cantava nas festas de aniversário. Anos mais tarde, foi tia Maria Silvia que me apresentou ao professor Carlos Chambelland, para que eu iniciasse meu curso de Belas Artes no Rio.


*Fotos da casa: Luiz Salles Coelho

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