segunda-feira, 12 de março de 2018

OS "SEM CARRO"

Enquanto espero o ônibus, vou anotando num caderninho as vantagens dos “sem carro”. A espera é um treino de paciência, enquanto esperamos podemos observar melhor o que nos circunda.
Não se paga estacionamento, nem faixa-azul, não se gasta gasolina nem se paga motorista. Fica-se livre das terríveis multas, e também do sufoco do DETRAN com filas enormes e milhares de pessoas falando ao mesmo tempo. “A senhora pode passar na frente de todos, para pegar o papel.” Consegui pegar o papel mas não fiquei livre daquela multidão falando ao mesmo tempo uma avalanche de vozes, um sufoco...
Agora, sentada num banco em frente ao colégio Coração de Jesus, posso observar de perto o tráfego. Existem os sem terra, sem teto e “sem carro” – e esses últimos levam vantagens.
Os “sem carro” podem respirar melhor e observar os que passam dentro de veículos andando sempre sentados pelas ruas da cidade. Estão sempre preocupados ( inclusive em serem assaltados pelos meninos nos sinais de trânsito).
Os “sem carro” observam as coisas em volta, conhecem pessoas diferentes, vivem o agora com maior intensidade. No momento, estou sentada num banco de espera de ônibus. Em minha frente, do outro lado da calçada, existe uma casa antiga, tombada pelo patrimônio e derrubada pelo tempo. Do outro lado da rua a casa também vê os carros passando  apressados, cada um com seus problemas, enclausurados sobre quatro rodas. A casa tem uma varandinha onde os namorados se encontravam e lá dentro outras estórias aconteciam. Deve ter sido palco de muitos eventos, nascimentos, casamentos, enterros. Vou imaginando a história daquela casa em frente ao Colégio Coração de Jesus. Deve ter sido construída na década de 20 e lembra um pouco da casa da minha  avó na rua Ceará, igualzinha a esta, de frente para a rua, tinha até uma jaboticabeira no quintal. A vida naquela época era mais calma, as crianças tinham tempo para brincar, hoje só pensam em videogames, televisão, computadores e celulares. Os adultos não perdem as novelas, as crianças e as empregadas também assistem. As redes sociais nos celulares estão presentes o tempo todo. A casa em frente ao ponto de ônibus me lembra os saraus de antigamente. As famílias se reuniam para ouvir um piano, ou assistir a um teatrinho de crianças. Tios e primos batiam palmas e a glória para a criança ficava em família. Já participei de vários eventos familiares, liderados por uma tia muito criativa. Fizemos circo, cinema, dança, aulas de criatividade incentivadas em casa, pelos próprios parentes. Todos os aniversários eram festejados com números de dança, música, artes plásticas, teatro. Fazíamos bonequinhas de papel crepom, casca de ovo com a carinha pintada, muitas vezes com a cara dos parentes. Minha tendência para as artes plásticas foi descoberta num desses saraus. Tinha quinze anos de idade, subi num banco e desenhei a caricatura de todos os tios. Resultado: mandaram-me para o Rio de Janeiro, estudar com o Chambelland –até que surgiu Guignard em Belo Horizonte. E a coisa mudou. O academismo não era a minha linha, tive de desaprender para começar de novo, retomando o fio da criatividade despertada na infância. Guignard foi o mestre mágico dessa transformação.
De repente me dou conta que estou sentada num banco público em frente ao Colégio Coração de Jesus. Vivenciar com atenção o inesperado, o não programado, torna-se uma das formas mais diretas de se aprender com a vida.
O ônibus chega e me sento no banco da frente, um direito adquirido pelos maiores de 65 anos. Continuo anotando:
 O perfume chegou antes dela e sentou-se no meu lado. Viajamos em silêncio por alguns minutos. A mulher do perfume  vestia-se de forma exótica. De repente me cutucou: “Oi, dona, você tem aí um real?” Olhei para ela : “Infelizmente não posso atendê-la, estou sem troco, escolhi esse ônibus porque vou de graça, nós duas estamos no mesmo barco! Viajar na frente do ônibus vermelho é só para os velhos, gestantes e deficientes. Os jovens vão atrás.” Outro silêncio e depois a voz de minha companheira de ônibus. “Que bom a gente ser velha, não se paga ônibus!” Há vantagens em ser da Terceira Idade. Agora posso acrescentar às vantagens dos “sem carro”, também as vantagens dos aposentados: não pagam ônibus, têm desconto no cinema, preferência nas filas. Existem aulas de arte para os velhos, serenatas, viagens, horas dançantes. Entrevistei no Rio um senhor de idade, que trabalhou como engenheiro na fábrica Bangu e não tem aposentadoria nem reclama do governo. Vive de uma pequena renda, os trocados de algumas apólices, “uns trocados”, como ele diz. Mora num apartamento de quarto e sala na Rua Domingos Ferreira, bem no coração do Leblon. Chegava da praia, tostado de sol, cabelos brancos, agarrado  a uma prancha usada. Todos os  dias obedece ao mesmo programa de furar ondas, nadar para além da arrebentação – boiar olhando as nuvens e o céu azul do Rio. Observa o brilho do sol sobre as ondas e se familiariza  com os peixes em volta. Os peixes se aproximam, são seus amigos. Só come verduras e frutas, prato de verão. À noite um copo de leite e pão, é o bastante. Seu hobby é um trenzinho elétrico que vai armando todos os dias, com apitos, paradas, estações, luzes. O passado do trem vai se transformando num brinquedo para gente grande lembrar das antigas linhas de ferro brasileiras. Maria Fumaça chegando, partindo, apitando. À noite, toca piano na mesma rua onde Vinícius de Morais morou – toca num pequeno bar onde se reúnem pessoas para cantar. Todos cantam.
Existe um aprendizado para todas as faixas etárias, que não depende de livros. Ele acontece a cada instante na vida de cada um de nós. É só nos colocarmos em atitude receptiva.

*Fotos da internet

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